Precisamos mesmo de falar de unidade de esquerda

As eleições para o Parlamento Europeu, em Portugal, confirmaram a viragem à direita que se havia sentido nas eleições legislativas em março. A vitória por margem mínima do PS não o altera, tal como não foi a margem mínima com que a AD venceu há três meses que então marcou a viragem. A queda do Chega é certamente uma boa notícia, mas nada leva a crer que assinale uma tendência consistente.

Aliás, a agressividade racista, não só no debate público e na campanha da extrema-direita, mas também na violência criminosa (as brutais agressões no Porto) e na ação aberta e constante de grupos neonazis (com cobertura das forças policiais), escalou a níveis inéditos.

Neste cenário, há que assumir, a esquerda não resistiu. Nós, o Bloco, recuámos 20 anos; a CDU teve o seu pior resultado de sempre; o Livre mostra dinamismo, mas longe de “compensar” o recuo que a esquerda à esquerda do PS tem de conjunto. Isto acontece duas semanas após um outro resultado muito duro, na Madeira, em que, pela primeira vez, a esquerda à esquerda do PS ficou de fora da Assembleia Regional.

Há que assumir, para a esquerda à esquerda do PS, os tempos são muito exigentes. Para as suas forças mais combativas, o risco é grande. O Bloco de Esquerda, ao longo dos seus 25 anos de vida, já passou por momentos duros, mas nada indica que se tenha deparado com um perigo desta dimensão. O risco da marginalização não pode ser descurado. A extrema-direita, o capital que a financia, parte assinalável dos grande média apostam forte nisso. “Acabar com a esquerda” deixou de ser uma ofensa indizível; é aliás um programa assumido. Nunca subestimar os inimigos é uma regra básica da política e da vida – em particular quando são poderosos.

Olhemos com atenção para os resultados eleitorais. O facto de as últimas europeias terem acontecido há longos cinco anos atrás propicia uma visão de conjunto. Os quase 20% que alcançou a direita à direita do PSD, eram superados então pela esquerda à esquerda do PS. Face a 2019, quadro inverteu-se; a quebra é muito assinalável.

Dirão que o mundo, a Europa e o país mudaram eles próprios, e muito, desde 2019. Essa data longínqua antecedeu a pandemia, a guerra na Ucrânia, a crise inflacionária, o genocídio na Palestina. Não vivíamos então sob uma corrida desenfreada ao armamento em que se tornam banais as ameaças de guerra nuclear. Dirão que estas mudanças iriam certamente pesar sobre a esquerda.

Precisamente! A mudança na situação política é profunda, a correlação de forças piorou muito. E perante mudanças na realidade, a tática tem de ter alterações correspondentes. É essa a essência da política: firmeza estratégica, flexibilidade tática. Manter a tática quando a correlação de forças se inverteu é abdicar de fazer política. É quase desistir. A fé de que podemos manter tudo inalterável esperando por dias melhores é muito arriscada. Há que mudar.

Unidade: matar de vez o tabu

É aqui que entra aquele que é o grande anseio, de décadas, e o grande tabu da esquerda portuguesa: a unidade.

Ricardo Araújo Pereira não escondeu a irritação quando, na segunda-feira, no seu programa dedicado ao rescaldo das europeias, assinalou que, juntos, Bloco, CDU e Livre seriam a terceira força política, à frente do Chega e da IL. O que nele é irritação, em milhares de pessoas, é frustração. A simpatia por essa ideia é praticamente unânime na base dos três partidos – que aliás não é estanque e se mistura. Repita-se: podíamos ter ficado à frente do Chega e da IL. Juntos. Podemos imaginar que efeito isso teria no ânimo de milhares e milhares de trabalhadores e jovens.

Mas não é só uma questão de votos. A manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi a maior mobilização no país, pelo menos, na última década – quem sabe do século. Não foi uma celebração cerimonial do meio centenário da revolução, foi a resistência popular de massas à ascensão da extrema-direita. Foi a prova de que há um potencial de luta para travar a viragem à direita e para inverter o rumo de retrocesso. Mas esse potencial está politicamente órfão: o PS não pode e não quer representar qualquer corrente combativa de massas; à sua esquerda, ninguém, sozinho, pode cumprir esse papel. Como o vapor de água que não é canalizado, órfão, esse potencial de luta dispersar-se-á. A barreira que persiste face à ascensão da extrema-direita ficará ainda mais ténue. Demorará anos a reconstruir. Num cenário de crise climática, militarização do mundo e ascensão global da extrema-direita, não sabemos como iremos atravessar essa tempestade; que esquerda emergirá do lado de lá da borrasca? Ignoramos e é melhor não arriscar.

A unidade da esquerda é essencial. Começa a ser uma necessidade existencial. Quando for seriamente enunciada, de maneira firme, sem truques, sem hesitações, abrirá um diálogo com dezenas – centenas – de milhares de trabalhadores que ninguém poderá ignorar. As dificuldades de décadas de sectarismo acumulado far-se-ão sentir, mas não são intransponíveis.

A perspetiva eleitoral de uma política assim deve ser seriamente considerada. Mas trata-se de muito mais do que isso: de dar um corpo político à torrente popular e democrática que encheu as ruas a 25 de Abril. Nenhum outro protagonista político se apoia num potencial de mobilização assim. Só a esquerda expressa uma força desta dimensão. Mas só unida pode cumprir esse papel.

E o PS, como entra nesta equação? Um campo popular à esquerda só se pode afirmar sobre um programa claro em defesa da habitação e dos serviços públicos, do aumento de salários, da paz e do combate ao racismo e à xenofobia. Em oposição à extrema-direita e ao governo. O desafio deve ser lançado ao PS, desde já, exigindo que se oponha ao Orçamento de Estado do governo, cuja aprovação anula os socialistas, consolida a direita e alivia a extrema-direita. Sim, o PS deve ser desafiado a decidir, de vez, a quem dá a mão; que programa abraça; sem truques. Está com a esquerda ou com o governo?

Mas essa exigência só pode partir da esquerda, Bloco, PCP e Livre. Temos mesmo de falar.

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